3_Guitar Hero



 
Já haviam se passado quase seis meses desde aquele incidente. No começo ele ligou , duas ou três vezes. Eu não atendi. Quando ele parou de ligar, foi a minha vez de não ser atendida. Primeiro, fiquei em fúria, por dentro e por fora. Antes de tudo éramos amigos, não éramos? Apesar de tudo eu conseguia enxergar-lhe a alma, por trás de toda aquela marra postiça. Era eu que sabia o que ele estava sentindo mesmo que ele nunca falasse disso. Amarguei longos dias em casa, e outros longos dias andando por aí , numa espécie de penitência; Com parte de mim torcendo para não ver aquele rosto de novo e a outra que o procurava freneticamente no meio de cada grupinho juvenil que via pela rua.
Um amigo em comum me mostrou um dia a garota de quem ele gostava, ela era lindíssima; o  cabelo castanho emoldurando aquele rosto perfeito, de sorriso bonito e olhos verdes. Eu imaginei o quão orgulhoso ele diria : - Esta é minha namorada.
 Um nó estava feito em minha garganta, engoli seco. Meu rosto quente. Fui arrancada dos braços da ignorância, eu sabia o por quê de tudo aquilo, no meu âmago, sempre soube que ele nunca me veria daquele jeito, bonita. Foi como um tapa no rosto, a pele ruborizada contornando as marcas de dedos, uma agressão que apontava para minha essência desprezível, ridícula e impotente. Seu autógrafo em mim.
Carreguei durante muito tempo aquelas marcas em meu rosto, eu ignorava superficialmente aquela dor caustrofóbica, que estava me acorrentando os tornozelos, mantendo meus pés descalços no chão imundo daquela realidade amarga. MINHA realidade amarga, só eu sabia, só eu me importava.
O tempo passou e andando num fim de noite depois do trabalho, luzes verdes e vermelhas piscando em um letreiro chamaram a minha atenção, entrei no barzinho, nem sei por quê, já que não bebo. Uma banda tocava no pequeno palco no canto do bar, a música entraria no refrão quando o vi. Aquele mesmo cabelo escuro, milimetricamente despentiado, os dedos serpentiando nas cordas da guitarra..Era como se fossem um só, as notas saindo num conta-gotas da alma, os olhos acesos, gloriosos. Não estava fazendo música, ele era música. Foi ali, assistindo-o ser "deus" por alguns instantes que minha dor enterrou-se em mim. Era ali que o coração dele estava, não havia espaço pra mais nada.
Continuei assistindo até o fim da apresentação, ele descendo do palco, feliz, por sinal; ele havia consquistado a garota de quem gostava, ela estava lá sorrindo, Afrodite em pessoa. Ele sorrindo um pouco também para logo depois passar os dedos naquele rosto de pêssego e dar-lhe um beijo . Eu estava enganada, de novo; a única que não tinha espaço na vida dele era eu e ponto. Mas eu estava liberta, de certo modo, eu o conhecia e sabia que ele estava completo, finalmente. Pouco antes de sair do bar ele me viu, de relance. E não havia absolutamente nada nos olhos dele, como eu imaginava. 

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